* Por Jackeline Lourenço Aristides
Trabalho como enfermeira em um
CAPS Infanti , e descreverei algumas atribuições de um Centro
de Atenção Psicossocial, bem como potencialidades do trabalho em equipe e na
comunidade, dificuldades enfrentadas na sociedade e no trabalho em rede e o
processo de trabalho do enfermeiro. Quero ajudar na construção de eixos
norteadores para nós trabalhadores de saúde, trabalhadores cada vez mais
precarizados, fragmentados, pouco escutados, mas que ainda acreditamos numa
sociedade mais justa e libertária.
O público alvo do CAPS é de crianças
e adolescentes com transtorno mental moderado a grave como psicoses, autismo e
neuroses graves. Além do suporte biopsicossocial (atendimento psicológico,
consultas de enfermagem, visitas domiciliares, reuniões em rede,
aconselhamento, reabilitação psicossocial, reuniões de família, grupos
terapêuticos, encaminhamento para serviços comunitários de lazer, trabalho e
educação) também deve ser oferecido o atendimento psiquiátrico.
Sabemos que quando a criança
adoece, adoece também a família, ou mesmo não sabemos delimitar quando começa
ou termina o adoecimento, sendo assim o trabalho da equipe de saúde mental não
se restringe somente ao usuário, mas também à família. E, o que percebemos também
é a responsabilização da família como culpada dos agravos ou da situação das
crianças e adolescentes, quero implicar aqui o termo da corresponsabilização,
já que os profissionais de saúde não devem ser omissos e culpabilizar sempre a
família, e sim instrumentalizá-la para fortalecer laços saudáveis.
Parece que a família dá conta de tudo, dos
problemas da sociedade capitalista, da falta de emprego, de perspectivas, que
certamente se refletem na família, núcleo duro das práticas machistas,
homofóbicas, de violência interparental aprendidas durante a vida dos
indivíduos. A família burguesa é aquela em que temos pai, mãe, filhinhos lindos
em uma mesa repleta durante a manhã, protegida dentro de suas casas
enclausuradas por muros e cercas, família também adoecida, já que lá no fundo
sabemos que ainda existem relações patriarcais, a mulher submissa ao marido, os
filhos respeitando os pais por medo apenas. Contesto “o limite” imposto aos
filhos por meio do medo. Acho muito mais saudável famílias que discutem suas
diferenças, em que o pai admite que a filha é homossexual, ou um casal de
homossexuais que respeitam-se. Esse é outro debate, mudou-se o perfil das
famílias, e os trabalhadores da saúde não acompanharam este movimento.
O debate com a centralidade na
família esconde a omissão do ESTADO CAPITALISTA em fortalecer os serviços, de
acolher as pessoas, de investir pouco em áreas estratégicas como a saúde,
trabalho e educação.
Para trabalhar com a família, toda
a rede de serviços deve estar implicada, não como serviços punitivos,
cerceadores de direitos, mas como parceiros de políticas públicas que dão certo
pelo país afora, que promovam trocas de saberes, construam protocolos, norteiem
o setor da saúde, assistência social, justiça, educação, lazer e educação.
Trabalhamos em sentidos opostos, ora vemos as crianças e adolescentes como
seres sem autonomia, ora como infratores, perigosos, insensíveis, ora como
anjos, “sem pecado”.
Hoje, o que temos visto é a
insensibilidade dos serviços, a falta de profissionais capacitados em todas as
áreas, uma moral mutiladora da sociedade. Há um consenso “que antigamente” as
crianças “eram mais educadas, mais moralizadas”, parece que quando crianças não
brincávamos, não subíamos em árvores, não pulávamos árvores, não cabulávamos
aulas, não fazíamos sexo sem amor, não namorávamos, não tínhamos tesão! Já vi
professores chamando a patrulha escolar porque um menino subiu em uma árvore!
As crianças estão expressamente proibidas de brincar, sonhar, falar não! A
rebeldia está prestes a virar diagnóstico médico segundo o CID- Código Internacional de Doenças. Não pode
dizer não, interrogar o professores, que tem transtorno de conduta!
Todos somos hiperativos, ou temos déficits de atenção, quando a aula é
chata, ou quando o assunto debatido não faz parte do nosso cotidiano, ou mesmo
quando os professores nos tratam mal, nos tratam como homogêneos, não respeitam
nossas diferenças. Faço um parêntese, não quero culpabilizar o professor, este
está abandonado pelos gestores, em salas com 40 alunos, sem o respeito do piso
salarial, sem tempo para educação permanente...
Se não for medicado, se não for
contido, não pode frequentar a sala de aula, já vi diretores e pedagogos
impedirem os alunos que não têm receitas de ritalina, ou “calmantes” prescritos
pelos médicos. Já vi mães relatando que professores davam por conta ritalina
sem prescrição médica aos seus filhos. Estudos apontam que cerca de 10% das
crianças em idade escolar tomam ritalina no Brasil, nos EUA, país campeão em
uso de psicotrópicos, isso chega a 30%! Será que seguiremos o mesmo caminho,
muitos destas crianças serão fortes candidatas a fazer uso de anfetaminas e ou
ansiolíticos quando crescererem, alimentando a indústria farmacêutica.
Falando em droga, outro grupo que
estamos absorvendo são os dos usuários em álcool e drogas, propondo outra
abordagem utilizando a redução de danos e fazendo enfrentamento aos biologicismos
e ao tratamento centrado no médico.
Este público passou a frequentar as páginas
policiais de uns anos para cá, os manicômios, os complexos penais médicos
“antigo manicômio judiciário” e as prisões comuns. Hoje, um adolescente que é
apanhado por porte de maconha paga medida socioeducativa por anos, já vi vários
casos assim, ou são obrigados a fazer tratamento forçado em hospitais
psiquiátricos por uso desta substância. Estranho que os verdadeiros traficantes,
aqueles ligados à banqueiros, bicheiros e deputados passam ilesos.
Já recebi ligações de
conselheiros tutelares querendo a internação compulsória de adolescentes que só
utilizavam o tabaco, haja leitos para tantos fumantes! Já vi também tentativas
desse gênero para adolescentes em idade produtiva, que estão finalizando o
segundo grau, pensando em faculdade, internação psiquiátrica pelo uso de
maconha uma vez ao dia! Esquecem que 70% da população faz uso de álcool, seja
de forma esporádica ou contínua, ou mesmo que vão ao happy hour nos fins de
tarde, é muita hipocrisia...
Há várias distorções nessa
abordagem, o que vemos de falta é a falta de opção terapêutica para quem de
fato precisa e que querem cessar o uso, como dependentes químicos de crack e
álcool e que perderam os vínculos sociais, e excesso de vigilância para aqueles
que fazem o uso, e que precisariam apenas de apoio dos serviços. É proibido
falar em redução de danos! Parece que estamos fazendo apologia! É óbvio que
devemos cuidar daqueles que já possuem histórico de transtorno mental prévio e
que passam a fazer uso abusivo de drogas ou mesmo se tornam dependentes, e
daqueles que querem de fato parar o uso. Ficaríamos aqui várias horas falando
das distorções que a redução de danos pode construir no imaginário das pessoas
por simples falta de conhecimento.
Ao falarmos em convivência
familiar e comunitária, bem como da luta antimanicomial há uma denotação de
esquerdismo, ou seja, parecemos utópicas, o hospital psiquiátrico protege dos
maus tratos e da violência das ruas e por isso vamos internar! Só esquecem de
enfrentar o cerne da discussão, que são dos determinantes do uso de drogas,
segregar nunca foi tratamento ou tampouco terapêutico. Quando um
insulinodependente não adere à insulina nunca propomos uma internação
compulsória, a não ser que ele esteja hipoglicêmico ou comatoso, o mesmo
pensamento deveria ser para usuários de drogas, por exemplo, mas porque é
diferente, eu fico pensando.
Esquecemos de falar também que os
manicômios possuem inúmeras denúncias de mortes, violência sexual, moral e
física, impondo às pessoas em sofrimento mental o isolamento social e higienista de uma
sociedade que é indiferente aos seus pares.
Saudações Antimanicomiais!